Introdução. A expressão “Rota Crítica” é um termo descrito por Montserrat Sagot (2000) e se refere ao caminho percorrido por mulheres para romperem/saírem da situação de violência que se encontram. Trata-se de uma situação de extrema vulnerabilidade e fragilização que envolve inúmeras mulheres que vivem em situação de violência sexual, e que exige sucessivas tomadas de decisão e apoio institucional para a garantia de direitos dessas mulheres. Normalmente é iniciada com a quebra do silêncio, quando mulheres decidem revelar a violência sofrida e pedir ajuda. Nessa trajetória da chamada “Rota Crítica” alguns fatores estão associados, tanto na condição de impulsionadores quanto de inibidores, para a continuidade ou o rompimento da situação de violência, tais como: conhecimento, percepções, atitudes, histórico de vida, rede de apoio, obstáculos, acesso aos serviços, dentre outros. Porém, ao longo desse debate, muito pouco se tem avançado quanto a compreensão do fenômeno da violência sexual e possibilidades interventivas a partir dos marcadores de raça, classe, gênero, mesmo com o avanço da produção do conhecimento orientado pelo debate de autoras feministas e movimentos sociais de gênero e raça. É inconteste que o conjunto desses fatores atuam na subjetividade das pessoas em situação de violência, contribuindo sobre como percebem e percorrem caminhos na busca por ajuda e encontram apoio, suporte e acolhida para romperem o ciclo da violência. Por isso a importância da existência de uma rede intersetorial estruturada na implementação de protocolos assistenciais de cuidados e proteção de direitos, acompanhado da permanente qualificação de profissionais para garantir uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar com acolhimento (Arboit et al, 2019), inclusive sob um olhar interseccional de raça, gênero e classe. Pelo exposto, tomamos como pergunta de partida para a presente pesquisa: Como o fenômeno e a Rota Crítica da violência sexual, sob a perspectiva interseccional, pode ser analisada para compreender os processos institucionais e as práticas de cuidado direcionadas as mulheres negras? Objetivo geral: Compreender a Rota Crítica da violência sexual por mulheres, sob a perspectiva interseccional, como analisador dos processos institucionais e das práticas de cuidado. Objetivos específicos: Reconhecer e problematizar as práticas de cuidado prestadas às pessoas em situação de violência sexual na rede intersetorial; Desenvolver os elementos feministas para reposicionamento das práticas de cuidado às pessoas em situação de violência sexual; Produzir e refletir, junto com as participantes, novas trilhas de cuidados que possam ser prestados às pessoas em situação de violência sexual na rede intersetorial. Fundamentação Teórica: Nesse cenário, é importante localizar o entendimento de rede, que se traduz na atuação colaborativa entre agentes públicos e diferentes atores trabalhando de maneira coordenada para alcançar o bem comum, em resposta às necessidades identificadas. A gestão de políticas em rede é a maneira de integrar de forma horizontalizada os envolvidos na resolução de complexidades (Heckert, 2017). Também se faz essencial a compreensão sobre o cuidado, Merhy (1999) descreve que no plano assistencial de cuidado, para além das ferramenta-máquinas e dos saberes profissionais estruturados, existe o estabelecido de um processo dinâmico de interações, de modo que o profissional e o usuário/paciente passam a exercer influências um sobre o outro, em um contexto permeado por expectativas mútuas e trocas. Dessa interação surgem momentos significativos de cuidado, com diálogos, escuta e interpretação, acolhimento ou não pelo que é posto em conversa; momentos de cumplicidade, nos quais há a identificação conjunta de responsabilidades no enfrentamento dos problemas; construção de vínculos, aceitação e confiança na relação. Quando falamos sobre uma atitude de cuidado, estamos diante de uma postura que deve ser levantada adentrando todas as questões e vulnerabilidades que envolvem os sujeitos, caso contrário, se permanecerá com práticas focalizadas, isoladas ou na maioria das vezes não sendo executadas. Nesse sentido, o diálogo com algumas autoras orienta o trabalho em questão. Françoise Vergès (2021) critica o pensamento de que a violência contra mulheres é consequência de um problema psicológico individual, pois argumenta que na verdade essa é uma consequência da estrutura patriarcal e capitalista, na qual o Estado e a polícia que deveriam proteger as mulheres, perpetuam a violência de gênero com forma de controle e dominação, reforçada pela cultura e pelas instituições sociais. Rita Segato (2005) endossa a questão quando coloca que o uso e abuso do corpo das mulheres é uma forma de aniquilamento, quando a própria pessoa perde o controle sobre o seu próprio corpo. Coloca que o estrupo é um ato de controle e posse do território alheio, como se este território fosse anexo do seu. O que vale nesse espaço-corpo é a vontade soberana e discricionária, que destitui esse espaço-corpo e o torna seu por vontade e poder. Controle irrestrito e soberano, que se a violência ocorre dentro do seu próprio lar, isto traduz que o homem possui o controle desse território e constata a sua dominação, se a violência ocorre em espaço aberto, isto traduz que executa por que pode e deve mostrar que pode, com capacidade para dominação (Segato, 2005). Sueli Carneiro (2003) traz sua importante contribuição para o debate, quando aponta que a violência contra mulher é democrática, atingindo todas as classes sociais e raciais. Entretanto, também aponta que as mulheres negras, há anos, lutam por incluir a violência racial, dentro das práticas que produzem outras violências vividas pelas mulheres negras, que historicamente, foram e ainda são coisificadas, desumanizadas, sendo reduzidas a objetos. Sueli Carneiro (2003), traz um questionamento para reflexão: “como é possível que o racismo, a discriminação racial e a violência racial permaneçam como tema periférico no discurso, na militância e em boa parte das políticas sobre a questão da violência contra a mulher” (p.16). O silêncio que envolve o racismo, nas microagressões cotidianas pode ser apontado nesse debate. O descuido com as especificidades das pessoas negras nos serviços de saúde, começa por exemplo, quando não se coleta o quesito cor/raça que estão presentes nos formulários. Descuidar de questões como essas é tornar invisível informações importantes para pensar ações para essa população. Outra questão importante nesse diálogo, são os apontamentos de Rita Segato (2016, 2018) que trazem elementos no centro da questão da violência sexual. Segato coloca que situar a violência sexual no campo da moralidade, apenas no âmbito das representações construídas de homens e mulheres, contribui para a invisibilidade e persistência dessa violência. Pois a violência sexual não é apenas uma questão restrita a isso, é um problema político, e portanto, deve ser tratada como tal. Método: A pesquisa apresenta-se como uma proposta de pesquisa-intervenção, na qual propõe a interação com coletividades, com a transformação entre pesquisadora e pesquisada, que fazem parte desse mesmo processo. Esse encontro de interações determinam os próprios percursos da pesquisa, levando em consideração as construções e transformações que ocorrem, visando construir e produzir outras relações. Essa perspectiva possui uma ação crítica e considera os aspectos sociais, históricos e políticos presentes no contexto (Rocha & Aguiar, 2003). A fundamentação ética do “PesquisarCOM”, termo cunhado por Moraes (2010), que adota a costura de narrativas, tanto de quem pesquisa, quanto de quem é pesquisado, como forma de estabelecimentos de vínculos com o campo e de dispersar outras versões da narrativa, além daquela considerada prevalecente, são os caminhos que procuramos construir. Desta forma, ao caminhar na construção de uma pesquisa artesanal, essa oferece a possibilidade de resistir ao modo de pesquisa hegemônico e também de valorizar as narrativas contadas, tecidas, compartilhadas e produzidas, em vez de produzir apenas objetos. Assim, esse caminho de afetos e transformações, se torna gerador de uma maior aproximação com a realidade vivida (Moraes & Quadros, 2020). A proposta metodológica tem referência na abordagem da Análise Institucional (AI), no sentido da pesquisa-intervenção que problematiza aquilo que está instituído, tratando-se, portanto, de descobrir e trazer à cena os elementos que compõem a instituição (Lourau, 1993). A pesquisa será desenvolvida na cidade de Parnaíba-PI. As participantes da pesquisa serão pessoas pertencentes à Rede de Enfrentamento à Violência Sexual no município, que trabalhem com a temática nos serviços dispostos na rede. A proposta inicial será de 10 participantes, tendo em vista a importância de formar um coletivo para as vivências da pesquisa. Quanto à ferramenta utilizada, serão realizadas oficinas temáticas com as participantes da pesquisa, no intuito de produção dos dados que possibilitem uma construção daquilo que emergir nos encontros. As oficinas temáticas serão realizadas em vista a adentrar, refletir e construir em conjunto, caminhos sobre essa problemática. Serão utilizados diários de campo em todo percurso da pesquisa, ferramenta que possibilita discorrer sobre as experiências vividas, para produção de dados daquilo que foi observado, produzido e sentido, com isso colocar os acontecimentos em análise. O projeto será submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Delta do Parnaíba.