PARENTALIDADE EM TEMPOS DE JUDICIALIZAÇÃO: FILIAÇÃO E CUIDADO NOS DISCURSOS JURÍDICOS
Parentalidade. Discurso Jurídico. Família. Gênero.
RESUMO
Este estudo teve como propósito analisar os discursos jurídicos de juízes/as, promotores/as de
justiça e defensores/as públicos/as sobre a parentalidade (paternidade e maternidade),
abordando os critérios utilizados por esses profissionais para definir a existência da relação de
filiação (pautada em laço biológico ou não, em contexto heteronormativo ou não) e de
cuidados parentais (convivência, afeto e provimento material). Examinaram-se os sentidos
atribuídos a “ser mãe” e a “ser pai” por profissionais do Direito que atuam em ações de
regulamentação de relações parentais (investigação de paternidade, guarda de filhos/as, ação
de alimentos, abandono afetivo, alienação parental, entre outros), observando as
subjetividades presentes em suas interpretações da lei e da realidade social, no que se refere à
família e às relações de gênero. A prospecção de sentidos nas falas dos sujeitos foi
operacionalizada através de entrevistas semiestruturadas submetidas à análise de discurso e
teve como locus de investigação as seis Varas de Famílias e Sucessões de Teresina-PI. A
discussão teórica está referenciada na literatura sobre família e relações de gênero,
particularmente no que diz respeito às relações de poder entremeadas nas masculinidades e
feminilidades produzidas nesse contexto, à luz de autoras/es como Badinter (2011; 1993),
Bourdieu (2012; 2002), Fonseca (2009, 2004; 2002a; 2002b); Giddens (2007), Saffioti
(2004), Santos (2011; 2010); Scott (2005; 1990); Szymanski (1995), Uziel (2012; 2007;
2004), entre outras/os. O exame dos discursos jurídicos a respeito da condição de pai e de
mãe evidencia as concepções e posturas desses profissionais em torno das configurações de
família e arranjos parentais que concebem e que, ora se assentam em modelos mais
igualitários, no tocante as relações de gênero, ora reforçam modelos tradicionais e
estereótipos. Os resultados dos aspectos analisados sobre filiação e cuidados indicam a
importância atribuída ao vínculo socioafetivo na demarcação da filiação. Assim, a paternidade
socioafetiva foi considerada mais importante, ou tão importante, quanto à paternidade
biológica. Em relação à adoção por homossexuais, embora sua aceitação não tenha sido
unânime, esta foi anuída por muitos/as, mas frequentemente seguindo a lógica do “mal
menor” e posta em dúvida por outras/os por conta do preconceito social ao qual a criança/
adolescente provavelmente seria submetida/o na sua vida cotidiana. Há um anseio desses/as
profissionais de que os pais participem mais em tarefas tradicionalmente atribuídas às mães
(cuidados), mas, em geral, não apontam para uma expectativa de equalização das funções
maternas e paternas. Nesse sentido, consideram positivo que o pai cumpra o “direito de
visita”, mas, de maneira geral, são contra a guarda compartilhada no tocante a alternância de
residência. Em relação à guarda dos/as filhos/as ao pai, a atribuição desta foi, na maior parte
das vezes, associada a uma característica negativa da mãe. O papel de provedor ainda
permanece associado à figura masculina, mesmo que este não seja, de fato, o responsável
principal pelo sustento da prole, desse modo, não pagar pensão alimentícia é pouco tolerado.
A ausência de afeto na relação parental foi considerada “lamentável”, mas admitida com certo
ar de fatalidade, enquanto o pagamento de indenização por danos morais decorrente do
abandono afetivo foi alvo de controvérsias, alguns afirmando a impossibilidade de obrigar
pais/mães a amarem os/as filhos/as e outros argumentando ser justo aplicar uma punição aos/
às pais/mães que se esquivaram da obrigação de cuidar e dar afeto. Os discursos a respeito do
que é ser pai atestavam a importância deste, embora estivessem atrelados ao nível do “dever
ser”, enquanto em relação à mãe se portavam ao nível do que “é”, e da sua maior importância,
quando comparada ao pai. Conclui-se que os discursos jurídicos estão intercalados por
“permanências” e “mudanças” no tocante a família e relações de gênero e que, em certos
casos, há um descompasso entre legislação e realidade social.